DEIXA PRA LÁ
Ou
Retrato de uma vida sem Sentido
Dedicado a Flavio Mello
Deitei-me as quatro da manhã, fazendo aquilo o que sempre faço, escrevendo, fumando e tomando café, normalmente isso tudo sozinho.
Ecoa em cada canto mofado de minha casa um silêncio irritante, perturbador, mas ao mesmo tempo consolador de minhas agonias, dos sonhos reprimidos.
Sonhos pra mim é luxo, é que raramente os tenho, se é que de fato os tenho, falo de sonhos mesmo daqueles que se tem em quanto se dorme, e não de projetos premeditados que nunca se realizam.
São quatro e meia, sei que em algum momento tenho que ir dormir, mas é tão vazio, não me lembro de absolutamente nada, deito-me fecho os olhos e (o que me parece ser poucos minutos depois) o maldito despertador dispara, feito uma criança ensandecida, um barulho irritante, ai está outra coisa da qual eu deveria me livrar, o maldito despertador. Meu sono parece curto e escasso. Estou sempre cansado e pra baixo. Alguns poucos amigos dizem que isso é falta de sonhar, ainda não entendo o porquê de me dizerem isso, afinal (pelo que sei) sonho é ilusão. Então, quer dizer que, não posso ser feliz por não permitir ser iludido?
A rotina me consome me explora, me destrói pouco a pouco, é estranho mesmo tendo a consciência desse mal continuo dependente dessa droga, desse vicio, e rotineiramente simplesmente vivo o script. Cada dia é como um ensaio e os ensaios se aperfeiçoam, até o dia do espetáculo final, que imagino ser a morte ou algo banalmente igual.
Sei lá, o sentido de tudo o que faço, também não sei o mistério do bem e do mal, na verdade – que se foda o mistério do bem e do mal.
Saio às sextas-feiras e me divirto do meu jeito, café, livro, mulheres, conversas, sexo, amigos e bebidas. Não me importo com a direção que o meu futuro toma. A verdade é que independentemente da estrada que tomarmos todos nós, isso inclui você e eu, nos encontraremos no final. Juntos em uma cova de sete palmos (isso se o coveiro não estiver cansado e não resolver economizar uns palmos, no ato de seu filosófico ofício).
Quem sabe eu pense tudo isso por pura inveja (só por que não sonho), só por que não posso voar não posso me deitar com a mulher que amo, ter a filha que sonho, ser feliz de todo coração? Talvez seja isso. Sim eu amaria, de coração inteiro, repleto de um amor complexo, destes que juram ser pra sempre. Eu até cumpriria, mas sozinho não dá, digo sozinho não porque ninguém goste de mim, sou até que amável, tolerável, mas nunca encontrei alguém que eu amasse de verdade. É, quem sabe eu seja mesmo um invejoso, um infeliz que não tem a dádiva de sonhar. Quem sabe seja eu um castigo entregue a todos por Deus. Bom se ele deu-me como um castigo que pelo menos acertasse.
Agora além de sonhar não durmo direito, bom é o que dizem: “Nem tudo é ...” deixa pra lá.
Finalmente me deito, repousado na cama da minha solidão, no quarto das minhas paixões, casamentos de dois dias. Eu até que sofri por amor, chorei, lamentei, esbravejei com os céus, sofri uma vida inteira, tudo em um único dia. Fiz de um ano uma semana. Os olhos se fecham. E na mesma sensação se abrem estranhos, dessa vez o despertador esta calado, levanto-me vou até a porta da cozinha que dá pro corredor, o dia está nublado, cinza e molhado. Ao virar a cabeça para direita me deparo com uma figura linda, uma mulher, um anjo, uma bailarina que divaga por meus olhos, rodopia em meus pensamentos, não consigo falar, ela me olha com seu olhar de menina, mas não um olhar superficial, olha minha alma. Dá um sorriso misterioso e sombrio, vira-se e sai, a porta bate detrás dela.
Recuperando-me do êxtase ponho-me a subir as escadas, a perseguir a amada que mal conheço, mas que desejo, ao abrir a porta escuto o barulho que rompe o silêncio como rajadas no ar, o familiar som do maldito despertador, desperto.
Hoje sai do script, estou mais irritado, mais injuriado e desolado do que nos dias normais, hoje quebrei a rotina, descobri uma coisa nova, aquilo que todos têm e que deus havia me confinado a não ter (me castigado), fico a pensar se foi mesmo castigo ou foi um presente, bom acho que foi ... ah, deixa pra lá.
Allan Andreas
Madrugada de 28/12/2009